quarta-feira, 17 de março de 2010

CALENDÁRIO COLETIVO TERRESTRE ou SÃO JOSÉ E A RIBAÇÃO DO TRACAJÁ


Entre fins de março e começo de abril para de chover na amazônia, começa o período da estiagem. Até fins de setembro, começo de outubro, chove pouco, às vezes nem chove. Em agosto, tá tudo bem seco, os rios mostram suas praias, outrora leito. Nessas praias os tracajás, um quelônio muito comum na amazônia cuja carne e ovos são parte da culinária indígena-beiradeira, botam seus ovos. Mas a areia muito seca se esfarela, e não tem consistência para que ele CAVE UMA COVA para ponhá-los. Só que a natureza é sábia. Na segunda quinzena de agosto, mas precisamente dia 24 de agosto, ocorre uma grande chuva, que não enche o rio mas umidece suas beiras, para que o tracajá vá pra riba e ponha seus ovos. É a ribação do tracajá. Depois dessa chuva as pessoas vão para as praias procurando essas covas, enfiando pequenos paus nas partes fofas, ou para onde vão seus rastros. Quando a ponta do pau sai suja de amarelo, tem uma cova. A gemada, do ovo cru com farinha, é muito boa e forte.

E mudando de assunto sem perder o fio, dia 19 de março cai a última grande chuva da estação das chuvas, a chuva de são josé. Esse ano parece que ela se adiantou, caiu dia 16. Encheu os rios e atravessou a estrada, e por isso eu estou aqui sentado teclando e não estou no mato arrumando minha boroca para ganhar a mata. (Tomara que a do dia 19 tenha mesmo se adiantado e não esteja se ajeitando no céu, pois vou tentar de novo dia 20).

Admiro muito o pensamento dos índios por ver nessas conexões, ciclos, imbricações, mais do que a natureza e sua lógica, mas relações entre seres de igual teor em espírito, mesmo que diferentes. Causas e consequências das ações das essências das coisas, e não mecanismos sem pulso como uma ampulheta certeira.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Casa pra mim é o espaço compreendido num raio de três metros de meu cafofo nômade, onde me bagunço e espalho badulaques, utensílios e desprezos. Onde conserto. Escuto musica e sereno. Minha vida ficou assim sem raíz e virei sujeito híbrido sem fico. Amizades de sempre fazem falta, mas sensação de início também anima, início de estadas, tenho vários feixes que me ligam de um jeito a pessoas que conheci por estradas e que nunca mais eu vou ver, mas lembro delas e das coisas em volta e sinto que assim trago ligações, que de prático nada significam, mas que me dignificam pelo que vi nas dadas horas ligadas, e assim construo eu, que tento ser algo. Longe dos reais brothas - que de reais sempre brothas -, cumprimento o caixa do mercado, a morena frentista shell, o mecânico, =relacões comerciais que não são só, e nelas me insiro de corpo presente e cultivo conversas de parede que são para mim assuntos de primeira instância. Ainda que lascado, vou fazendo pequenos amigos pelo brasil, a única grandeza que carrego.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Amazônia de ontem e de manhã

Conversando com o pessoal da velha guarda, indigenistas e outros de outros cantos, ouço bastante o tal do "no meu tempo"... Olhares de antigamente que enxergam o hoje com outros olhos, que viram a metamorfose, as sínteses que foram rapidamente mudando estes rincões. Contam dos lugares mais isolados, dos vagos mais espaçados, de vastas árvores onde hoje tem pastos, de regiões de índios antigas, hojes habitadas por bois. Relatos até difíceis de imaginar, vindos de olhares sábios.
E eu fico pensando como será o mundo, e como será a Amazônia, quando eu estiver contando que "no meu tempo"... Vou dizer que no meu tempo as fronteiras eram empurradas a passos largos. Que no meu tempo havia no ar uma mistura de esperança com caminhos alternativos e uma certeza do inevitável desenvolvimento, do porvir humano. Que no meu tempo se falava que o país devia crescer e eu achava que tinha que diminuir e distribuir, que tinha que envolver e não que desenvolver. Que no meu tempo apesar do avanço de tanta coisa a amazônia ainda era vista como um oeste americano a ser varrido e plantado. Vou dizer que no meu tempo eu sentia uma angústia quanto ao que todos diziam que ocorreria, que a tirada do mato depois de um ponto era irreversível, e que não tinha jeito, "a vida é essa". Que essa angústia misturava na goela com o pó do barro da estrada hoje (amanhã) asfaltada. Vou dizer que naquele asfalto eu já atolei muito. Que no meu tempo essa região era habitada por caminhoneiro puxando madeira, por peão de boiadeiro, por gente humilde e solidária, que era a mão de obra, o executor de um projeto destrutivo no qual não tinham opinado. Que para ganhar o pão, trabalhavam para quem dominava o país e transformava a Amazônia num grande pasto para exportação, para pouca gente ficar rica.
Vou dizer também que no meu empo havia um conflito de forças e de interresses sobre a amazônia. De um lado uma parcela de gente que acreditava que a amazônia era uma riqueza não só financeira, mas um patrimônio espiritual, cultural, biológico, e coisas mais que não cabem na compartimentação de nosso saber. E de outro a maioria, que queria poder comprar os melhores eletrodomésticos e ter o melhor carro, e foda-se o custo global disso. E o problema, direi, era que os do primeiro time emperravam na burocracia para implementação das boas leis, na falta de articulação, e na falta e poder frente o segundo time, que era mais rico e controlava as esferas do poder em brasília.
Tomara eu chegue lá pra contar. Tomara não seja tudo uma savana, tomara quando eu conte meu relato não seja totalmente distante da realidade, que seja bem crível e pouco incrível. Tomara eu não diga "sorte minha que vi". Tomara, mas não sei não hein.