Na esteira dos processos de
mudança no uso e ocupação do solo, muitas outras mudanças em geral ocorrem na
vida das pessoas. Mudanças na forma como vivem e nas relações que estabelecem
com o território, com a natureza, com o lugar. Recentemente, por meio de uma
experiência profissional, pude conhecer uma realidade nova, e ver algumas
coisas de um processo de transformação desse tipo.
No leste do Mato Grosso do Sul,
fronteira com São Paulo, a pecuária se estabeleceu ao longo de algumas décadas
como atividade predominante na paisagem e na economia. Depois do passado indígena
que foi ali praticamente erradicado da memória geográfica, a agricultura
familiar dos primeiros colonos foi aos poucos dando lugar às grandes fazendas
de gado. Com o maior capital atrelado a esta atividade, aos poucos foi se
construindo uma infraestrutura precária de suporte, conformando uma nova
disposição do espaço. Estradas principais e vicinais, estruturas de
beneficiamento e transporte da carne, desmatamento de novas áreas, e uma lógica
de residência de pequenas vilas de trabalhadores da pecuária nas fazendas.
A partir de elementos cuja
compreensão demandaria um estudo profundo, que seria por sinal muito
interessante, se pôs em curso no território um processo dinâmico de construção
contínua de uma cultura relacionada ao mundo da pecuária. Cultura construída a
partir do imaginário de ocupação pioneira de um território ainda de “Mato
Grosso”, de apropriação simbólica e de conquista deste território; da prática
de trabalho com os rebanhos nos pastos e nos cerrados, de caça e pesca nos
vastos rios e matas tão ricas em fauna, até hoje; das referências trazidas
pelos migrantes vindos de tantas áreas longínquas; e, principalmente, da
convivência entre os elementos desta nova atividade predominante com as
características anteriores do espaço – a agricultura familiar, relações mais
tradicionais de trabalho e posse da terra, estruturas sociais mais
características do tempo pré-pecuária.
A organização do espaço fundada
com as grandes fazendas de gado estabeleceu as vilas das fazendas como o padrão
de habitação desse universo rural, pequenos centros em relação direta com os
núcleos urbanos que, ainda pouco dotados de serviços, serviam de entrepostos
comerciais para os gêneros básicos e centros de relações variadas. Estas vilas eram o centro de um calendário festivo
religioso que organizava as principais relações institucionalizadas entre as
fazendas, cada lugar tendo um santo padroeiro em cuja festa se tornava
especialista, o lugar da festa tal. Entre estas novenas e festas se entrelaçava
um tecido social de relações entre famílias, casamentos, intercâmbios, um
padrão de sociabilidade rural desse lugar.
Processos econômicos que
interligam territórios muito distantes concorreram para mudar muito rápido uma
configuração territorial construída ao longo de décadas. Direcionamentos de
cima, dos centros comerciais, que trouxeram a estas terras as possibilidades de
renderem mais dinheiro para seus proprietários. A grande demanda mundial de
celulose, o rápido crescimento da silvicultura no Brasil, encontraram ali
naquela região uma terra muito propícia para uma maior reprodução do capital,
mais acelerada, e representaram para os fazendeiros um jeito de ganhar mais
dinheiro com menos suor. A região se mostrou estratégica para a silvicultura
pela disponibilidade de terras em preços razoáveis, pela ampla oferta de água,
pela proximidade do rio Paraná como eixo de escoamento da celulose, e pela
existência de uma rede de infraestrutura consolidada. A semente do dinheiro voa
e encontra as melhores terras para crescer.
Grandes grupos compraram grandes
porções de terra no leste do MS e iniciaram uma ampla predominância da
monocultura do eucalipto na paisagem. Os fazendeiros antes dedicados
historicamente à pecuária receberam propostas de arrendamento, modelo pelo qual
ganham valores mensais pré acordados, garantidos e sem risco, e sem trabalho,
em troca da concessão de suas fazendas para o plantio do eucalipto.
Muitos trabalhadores da pecuária
procuraram outros rumos, tiveram dificuldades em se enquadrar em uma estrutura
produtiva ditada mais pelo calendário corporativo, em uma forma de trabalho que
não conheciam. Muitos agricultores foram trabalhar na silvicultura, comemorando
as oportunidades de emprego numa grande empresa, em condições melhores das
quais se viam abandonados no campo. Muitos migrantes de outras regiões em
crise, como a área canavieira do nordeste, vieram em busca de uma vida melhor.
As vilas das fazendas se desfizeram. As casas ainda estão lá, algumas usadas
pelas empresas como pontos de apoio. Objetos, lugares, ferramentas, crânios de
boi, ficam jogados como fantasmas de outros tempos na paisagem, entre as
caminhonetes e máquinas agrícolas modernas.
Um motorista me conduz por entre
a paisagem repetitiva dos eucaliptos. Mostra um lugar onde passou a infância,
onde ia nas novenas, onde sua mãe conheceu seu pai. Mostra restos de matos onde
caçava na infância, onde se perdia por dias no mato com os primos, acolá as
fazendas onde passava férias. Acelera o carro, tem hora para o curso de gestão
ambiental logo mais de noite. Diz que o mundo mudou e ele está tentando mudar
também, para não ficar pra trás.