segunda-feira, 28 de abril de 2008

Linguagem que se não precisa

Palavras úteis para transmitir mensagens
Palavras doces para adoçar mensagens
Palavras duras para pendurar nas grades
Palavras curtas para OS casos graves
Palavras que dão sopa na boca
Mesmo se são só de dar sopa na boca
Palavras periclitantes na boca
De quem toma calmante
Palavras para se forçar adiante
Palavras com som radiante
Ou de um atirador fumegante
Palavras pra falar e palavras pra fazer som
Palavras para tentar ser bom
Palavras por palavras e por mais nada
Palavras para viver linguagem.

terça-feira, 22 de abril de 2008

Urubu de duas cabeças


Wajãpi queria pegar pena do Urubu para fazer flecha. Fizeram armadilha com carne de anta podre e mataram muitos urubus. Um dia Wajãpi foi sozinho visitar armadilha, mas nenhum urubu veio, pois tinham matado já muitos. Então apareceu uruvuãkãmuka, dono do urubu. Wajãpi tentou flechar ele, mas não conseguia, ele desviava rápido. Depois Uruvuãkãmuka falou pro Wajãpi “Vem, vou te levar pra casar com minha filha”. Ele tinha duas cabeças, e era muito grande. Ai Wajãpi subiu em cima dele.
Uruvuãkãmuka disse que Wajãpi não podia olhar o caminho, tinha de ir com os olhos fechados. Se olhasse o caminho, iria cair, então Wajãpi não olhou. Urubu voou, voou, foi muito longe, deu muita volta no céu. Depois chegou lá em cima, na aldeia dele. Lá é igual aldeia do Wajãpi, tem Jurá
[1], tem pátio. Só morava ele e a filha dele lá, pois os Wajãpi tinham matado muito Urubu. Lá na aldeia dele, os Urubus são como gente mesmo[2].
Então Uruvuãkãmuka deu um pedaço de anta podre pra filha dele, que ele tinha trazido num paneiro pendurado no pescoço. Pra ela cozinhar pro Wajãpi. Ele comeu o Beju, mas não comeu a carne, que era muito fedida. Ele só fingiu que comeu a carne.
No dia seguinte, urubu deu um paneiro pro Wajãpi e mandou ele buscar água no Rio. Ele tentou, tentou, mas água não parava no paneiro, que é todo furado. Então Muruwa
[3] apareceu e perguntou “o que você ta fazendo, meu neto”? Wajãpi contou que estava tentando carregar água. Muruwa disse a ele que não ia conseguir, e que Urubu o mataria. E ajudou ele pra pegar água no paneiro, mas falou pra ele não contar pro Urubu. Aí Wajãpi levou água pra filha do Urubu e disse – “toma, pode levar pro seu pai”. Ela levou.
No outro dia urubu levou Wajãpi na roça dele, uma roça muito grande mesmo. E disse pro Wajãpi que ele tinha que brocar a roça toda, tirar o mato, terminar antes de o sol ficar muito baixo. Ele tava brocando, um inseto chegou pra ele disse – “o que você ta fazendo, meu neto”? Wajãpi contou que tinha de brocar toda a roça do Urubu. O inseto disse que sozinho ele não conseguiria, e ajudou ele. Brocou a roça inteira, terminou de tardinha, mas disse ao Wajãpi que não contasse ao Urubu. “Se não ele te mata”. Aí Wajãpi voltou e contou pro urubu que tinha terminado. Urubu foi olhar a roça e viu que tava tudo brocado.
No outro dia urubu levou Wajãpi na floresta. Mostrou um lugar e falou pra ele derrubar uma roça grande pra ele, com o machado. Quando ele tava derrubando, o inseto ajudou ele de novo. Depois urubu foi lá e viu que Wajãpi tinha derrubado a roça grande.
Aí Wajãpi dormiu umas 4 noites lá na aldeia do Urubu. Depois urubu falou pra ele queimar roça
[4], pra ele queimar bem. Wajãpi foi lá e começou a fazer o fogo pra queimar tudo. O lagarto teju viu e chegou perto dele: “o que você ta fazendo, meu neto?”. Wajãpi disse que tinha de queimar tudo no mesmo dia. Teju disse que sozinho ele não iria conseguir, e ajudou ele. Amarrou uma brasa grande no rabo e correu muito rápido, de um lado pro outro, espalhando o fogo pelos galhos secos. A roça queimou bem, quando Urubu foi lá ele viu.
No dia seguinte Urubu levou Wajãpi num lago. Falou pra ele esvaziar o lago todo com uma cuia, depois trazer todos os peixes pra aldeia. Wajãpi começou a por a água pra fora, Ãsiã
[5] viu o trabalho dele e chegou perto: “o que você ta fazendo, meu neto?” -, ele perguntou. Disse que Wajãpi não conseguiria sozinho e ajudou-o. Quando esvaziaram o lago Wajãpi começou a pegar os peixes, mas era difícil, porque os peixes eram lisos. Soko[6] viu e perguntou pra ele “o que você tá fazendo, meu neto?”. Soko pega bem os peixes com o bico, e ajudou o Wajãpi. Wajãpi não contou nada sobre a ajuda ao Urubu, senão ele o matava. Urubu viu que Wajãpi trouxe todos os peixes. Wajãpi deu pra filha do Urubu e falou: “toma, pode cozinhar pro seu pai quando estiver podre o peixe”.
No dia seguinte Urubu deu uma pedra grande pro Wajãpi, e disse “faz um banco para eu sentar. Depois você pode casar com minha filha”. Wajãpi começou a bater na pedra com o terçado, mas era muito duro. Pykau
[7] viu a dificuldade e perguntou - “o que você ta fazendo, meu neto?”. Vendo que Wajãpi não conseguiria sozinho, ajudaram ele. Fizeram um banco com a figura do Uruvuãkãmoka.
Mas disseram pro Wajãpi “olha, Urubu vai matar você hoje, cuidado! Agente vai vim buscar você aqui de tarde pra levar você de volta pra terra. Quando você ouvir nosso assobio, tem que fugir pro Rio.” De tarde Urubu foi buscar o arco e flecha pra matar o Wajãpi. Quando ele estava voltando, Wajãpi escutou Pykau cantando na beira do rio, e correu. Pykau estavam numa canoa. Wajãpi entrou e eles remaram rápido. Disseram para Wajãpi que não podia olhar o caminho de volta, senão morreria. Wajãpi fechou os olhos. Pykau deram muitas voltas andando pelos rios, eles conheciam bem, andaram pelos rios no céu no caminho de volta para o chão. Chegaram na aldeia no Wajãpi. “Pode abrir o olho”, disseram. Wajãpi focou feliz de voltar. Depois que Wajãpi desceu, Pykau ficou em pé na beira da canoa e abriu bem os braços. Aí pulou e virou um pássaro de novo, e voltaram voando para a casa deles no céu.



[1] Casa Wajãpi com o assoalho erguido, distante do chão.
[2] É traço recorrente em diversas cosmologias ameríndias o entendimento da humanidade como uma condição de perspectiva; os bichos são humanos aos seus próprios olhos, e aos olhos daqueles que consigam ultrapassar as perspectivas e enxergar as reais formas, como os pajés.
[3] Um tipo de rã
[4] Os Wajãpi plantam no sistema de coivara, onde a abertura de uma clareira no mato é seguida da queima do local, preparando-o para o plantio.
[5] Um pássaro.
[6] Um pássaro
[7] Um pássaro

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Lava de vulcões desenfreados lambedoras de grama e semeadoras de cinza morte. Fumaça viva anuncia o cozimento das entranhas dos caules translúcidos dos capins endêmicos. Os gases voam ceifando respirações desesperadas. O universo se chacoalha.

anteontem pelo mundo

Anteontem fui a um café. Nunca fui de ir a cafés, mas desde que voltei para São Paulo tenho tipo um prazer aromático ao sentar e pedir um café, às vezes dois. Fui encontrar minha amiga, com quem há dois anos só mantinha relações virtuais, tectectecterectectec.

Conversamos longamente, pois pedíramos cafés grandes. Ela fora ao Zimbábwe (estou quase certo que é assim que escreve-se), trabalhar com lideranças comunitárias. Me falou sobre as pessoas de lá: parece que chegaram agora no mundo - imagino que por sua pilha, vontade, curiosidade para a diferença que, espero, vire regra e não defeito. Me falou também sobre o por do céu com o sol indo embora, e eu imaginei um laranja meio roxo, lindo na minha cabeça. E sobre a pobreza grande.

Eu lhe falei dos Wajãpi e do Amapá, das pessoas, do mato, da capital (população de outros lugares que mora alí mas pensa viver em copacabana, via rede globo). De algumas histórias.
Foi um passeio longo.