sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Monocultura, território e um trajeto de carro

Na esteira dos processos de mudança no uso e ocupação do solo, muitas outras mudanças em geral ocorrem na vida das pessoas. Mudanças na forma como vivem e nas relações que estabelecem com o território, com a natureza, com o lugar. Recentemente, por meio de uma experiência profissional, pude conhecer uma realidade nova, e ver algumas coisas de um processo de transformação desse tipo.
No leste do Mato Grosso do Sul, fronteira com São Paulo, a pecuária se estabeleceu ao longo de algumas décadas como atividade predominante na paisagem e na economia. Depois do passado indígena que foi ali praticamente erradicado da memória geográfica, a agricultura familiar dos primeiros colonos foi aos poucos dando lugar às grandes fazendas de gado. Com o maior capital atrelado a esta atividade, aos poucos foi se construindo uma infraestrutura precária de suporte, conformando uma nova disposição do espaço. Estradas principais e vicinais, estruturas de beneficiamento e transporte da carne, desmatamento de novas áreas, e uma lógica de residência de pequenas vilas de trabalhadores da pecuária nas fazendas.
A partir de elementos cuja compreensão demandaria um estudo profundo, que seria por sinal muito interessante, se pôs em curso no território um processo dinâmico de construção contínua de uma cultura relacionada ao mundo da pecuária. Cultura construída a partir do imaginário de ocupação pioneira de um território ainda de “Mato Grosso”, de apropriação simbólica e de conquista deste território; da prática de trabalho com os rebanhos nos pastos e nos cerrados, de caça e pesca nos vastos rios e matas tão ricas em fauna, até hoje; das referências trazidas pelos migrantes vindos de tantas áreas longínquas; e, principalmente, da convivência entre os elementos desta nova atividade predominante com as características anteriores do espaço – a agricultura familiar, relações mais tradicionais de trabalho e posse da terra, estruturas sociais mais características do tempo pré-pecuária.
A organização do espaço fundada com as grandes fazendas de gado estabeleceu as vilas das fazendas como o padrão de habitação desse universo rural, pequenos centros em relação direta com os núcleos urbanos que, ainda pouco dotados de serviços, serviam de entrepostos comerciais para os gêneros básicos e centros de relações variadas.  Estas vilas eram o centro de um calendário festivo religioso que organizava as principais relações institucionalizadas entre as fazendas, cada lugar tendo um santo padroeiro em cuja festa se tornava especialista, o lugar da festa tal. Entre estas novenas e festas se entrelaçava um tecido social de relações entre famílias, casamentos, intercâmbios, um padrão de sociabilidade rural desse lugar.
Processos econômicos que interligam territórios muito distantes concorreram para mudar muito rápido uma configuração territorial construída ao longo de décadas. Direcionamentos de cima, dos centros comerciais, que trouxeram a estas terras as possibilidades de renderem mais dinheiro para seus proprietários. A grande demanda mundial de celulose, o rápido crescimento da silvicultura no Brasil, encontraram ali naquela região uma terra muito propícia para uma maior reprodução do capital, mais acelerada, e representaram para os fazendeiros um jeito de ganhar mais dinheiro com menos suor. A região se mostrou estratégica para a silvicultura pela disponibilidade de terras em preços razoáveis, pela ampla oferta de água, pela proximidade do rio Paraná como eixo de escoamento da celulose, e pela existência de uma rede de infraestrutura consolidada. A semente do dinheiro voa e encontra as melhores terras para crescer.
Grandes grupos compraram grandes porções de terra no leste do MS e iniciaram uma ampla predominância da monocultura do eucalipto na paisagem. Os fazendeiros antes dedicados historicamente à pecuária receberam propostas de arrendamento, modelo pelo qual ganham valores mensais pré acordados, garantidos e sem risco, e sem trabalho, em troca da concessão de suas fazendas para o plantio do eucalipto.  
Muitos trabalhadores da pecuária procuraram outros rumos, tiveram dificuldades em se enquadrar em uma estrutura produtiva ditada mais pelo calendário corporativo, em uma forma de trabalho que não conheciam. Muitos agricultores foram trabalhar na silvicultura, comemorando as oportunidades de emprego numa grande empresa, em condições melhores das quais se viam abandonados no campo. Muitos migrantes de outras regiões em crise, como a área canavieira do nordeste, vieram em busca de uma vida melhor. As vilas das fazendas se desfizeram. As casas ainda estão lá, algumas usadas pelas empresas como pontos de apoio. Objetos, lugares, ferramentas, crânios de boi, ficam jogados como fantasmas de outros tempos na paisagem, entre as caminhonetes e máquinas agrícolas modernas.

Um motorista me conduz por entre a paisagem repetitiva dos eucaliptos. Mostra um lugar onde passou a infância, onde ia nas novenas, onde sua mãe conheceu seu pai. Mostra restos de matos onde caçava na infância, onde se perdia por dias no mato com os primos, acolá as fazendas onde passava férias. Acelera o carro, tem hora para o curso de gestão ambiental logo mais de noite. Diz que o mundo mudou e ele está tentando mudar também, para não ficar pra trás.